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A insolvência do promitente vendedor convoca um regime insolvencial específico, e com considerável e controverso desenvolvimento jurisprudencial.

 

O art. 106 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) apresenta-se como o a
norma do regime insolvencial aplicável ao contrato de promessa. Segundo o n.º 1 do art. 106.º do
CIRE, no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador de insolvência não pode
recusar o cumprimento do contrato de promessa com eficácia real, circunstância que vincula ambas as
partes à celebração do contrato definitivo. Estamos perante um preceito especial face à regra geral
vertida no art. 102 CIRE, segundo a qual o administrador da insolvência opta livremente pelo
cumprimento ou não dos negócios em curso. Contudo, esta inadmissibilidade de recusa do
cumprimento do contrato de promessa de compra e venda depende da verificação de alguns
requisitos, exige-se, designadamente, que o contrato promessa em causa tenha eficácia real e que
tenha havido tradição da coisa que é objeto do contrato de promessa.

Face a este regime, a doutrina tem discutido, no âmbito dos efeitos sobre os negócios em curso e
devido à frequência com que se verifica, na prática, a situação dos contratos-promessa com eficácia
meramente obrigacional relativos a prédio urbano ou fração autónoma. Não tendo eficácia real, o
administrador de insolvência é livre de recusar o cumprimento. Quanto a este ponto não surgem
grandes dúvidas.

A questão fundamental a este propósito é a de saber se, recusado o cumprimento pelo administrador,
o promitente-comprador que tenha obtido da tradição da coisa, goza do direito de receber o sinal em
dobro, nos termos do art. 442, n.º 2 do Código Civil, por um lado, e por outro se beneficia da
qualificação do seu crédito como garantido por via de direito de retenção previsto no art. 755, n.º 1, al.
C) do Código Civil.

O art. 442.º, n.º 2 do Código Civil estipula que o direito ao sinal em dobro pressupõe a verificação
cumulativa de três fatores, a saber:

– incumprimento do devedor;
– verificação de um incumprimento ilícito;
– e, por último, exige que o não cumprimento ilícito seja imputável ao devedor.

O Supremo Tribunal de Justiça, confrontado sistematicamente com estas questões, e com o
antagonismo de decisões dos tribunais de primeira e segunda instância, pronunciou-se em dois
importantes acórdãos de uniformização de jurisprudência.

No primeiro deles, o Acórdão de 20 de março de 2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1), o Supremo
Tribunal de Justiça optou por uma interpretação extensiva dos arts. 442.º, n.º 2 e 755.º, nº1, al. C) do
Código Civil e do art. 106.º do CIRE. Entendeu que o requisito do não cumprimento ser imputável ao
devedor, incluía uma imputabilidade indireta, mediata ou reflexa, afastando o conceito de culpa para
passar a significar causalidade.

Mas o Acórdão não se debruça directamente sobre se a recusa ao cumprimento por parte do
administrador confere o direito à restituição do sinal em dobro, ou se pelo contrário deve apenas o
promitente comprador receber de volta o sinal, em singelo.

Quanto ao direito de retenção vertido no art. 755.º, nº1, al. f) do Código Civil, o Supremo Tribunal de
Justiça optou por uma interpretação restritiva, atribuindo o direito de retenção apenas ao promitente
comprador que seja, simultaneamente, um consumidor.

Densificando mais tarde, no Acórdão uniformizador de jurisprudência de 12 de fevereiro de 2019, proc.
(2384/08.3TBSTS-D.P1.S1-A), o conceito de consumidor para este efeito, o qual pressupõe que o
imóvel objeto do contrato de promessa tenha como destino o uso particular do promitente-comprador,
não cabendo no mesmo o exercício de atividade profissional ou de cariz lucrativo.

A 27 de Abril de 2021, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (proc. nº 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-
A), veio pronunciar-se pelo afastamento do regime do artigo 442º nº 2 do Código Civil, e, portanto
recusando o direito à devolução em dobro do sinal por parte do promitente comprador, o que se por
um lado parece justificar-se, dado que habitualmente a conduta do administrador não será ilícita, por
outro confere logicamente menos solidez ao promitente-comprador que se vê despojado da
indemnização a que acreditou ter direito quando assinou o contrato-promessa.

É de referir que esta e outra jurisprudência tem sido controversa, desde logo no seio do próprio
Supremo Tribunal de Justiça, podendo-se encontrar, nos acórdãos citados, vários votos de vencido,
que demonstram a divergência de opiniões e a complexidade desta questão.

Face ao decidido nestes acórdãos, a tendência da jurisprudência vai no sentido de que, existindo a
tradição do imóvel, o crédito do promitente comprador sobrepõe-se ao do credor hipotecário e sempre
que o promitente comprador seja um consumidor, o direito à restituição do sinal será um crédito
garantido por força do direito de retenção.*

* O presente artigo tem uma finalidade meramente informativa e não preclude a necessidade de
aconselhamento por um advogado.